domingo, abril 30, 2006

AS CONDIÇÕES EXTERNAS DA APRENDIZAGEM : O EQUÍVOCO QUE LEVA AO FRACASSO

Ao recebermos uma criança com a queixa de fracasso na escola, não podemos deixar de considerar as causas externas que influenciam nesse fracasso, sendo o meio de onde ela vem capaz de contribuir em grande escala para que ele se estabeleça. Quando este meio for precário e inadequado para brincar, quando a família não se constituir de forma organizada, onde cada um de seus membros tenha um papel definido, quando o diálogo não existir de maneira clara entre eles, não permitindo que as informações circulem, quando a escola não reconhecer a subjetividade de seu aluno, todos estes fatores associados serão geradores de problemas de aprendizagem.

Ao chegar na escola, esta criança se vê frente a um novo mundo onde conceitos até então desconhecidos, passam a ser “ensinados” a ela, deixando de lado todo o seu conhecimento anterior, esquecendo toda a sua vida familiar e as dificuldades existentes no precário lugar em que mora. O que se passa na cabeça desta criança com os conceitos científicos que são ensinados a ela na escola? De que forma ela assimila estas informações e as desenvolve internamente? Na maioria das vezes, a criança não consegue assimilá-las por um simples motivo: tais informações não contêm significado para ela. Em outras palavras,

“um conceito é mais do que a soma de certas conexões associativas formadas pela memória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário”. (Vygotsky, 1987, p.71)

A escola ideal deve proporcionar à criança espaço para que torne significativo o aprender, promovendo efetivamente o conhecimento e, conseqüentemente, oportunizando a ela a apropriação deste conhecimento. “Permitir à criança apropriar-se de um conhecimento é permitir-lhe fortificar seu ego, na medida em que ela pode se constituir em uma personalidade mais segura, mais dominante e mais responsável”. (Paín, 1996, p.17)

Algumas das crianças encaminhadas para atendimentos, sejam eles psicológicos ou psicopedagógicos, “despertam” o prazer de aprender pelo simples fato de terem sido colocados a elas os estímulos necessários para que mostrassem suas habilidades. Tais situações evidenciam que em circunstâncias adequadas e ricas em estímulos, estas crianças demonstram, através de suas produções, que o problema não está nelas, e sim em condições externas desfavoráveis. Como podemos ler a seguir:

“É comum a criança com problemas de aprendizagem apresentar um déficit real do meio devido à confusão dos estímulos, à falta de ritmo ou à velocidade com que são brindados ou à pobreza ou carência dos mesmos e, em seu tratamento, se vê rapidamente favorecida mediante um material discriminado com clareza, fácil de manipular, diretamente associado à instrução de trabalho e de acordo com um ritmo apropriado para cada aquisição”.(Paín, 1992, p.22)

Até agora, centralizamos o problema na criança, no meio de onde ela vem e na escola como instituição que permanece imutável desde o início de sua existência. Mas e o profissional que trabalha nesta instituição? Qual será sua situação sócio-econômica? Como será sua família? Quais os conflitos pessoais que levará para a sala de aula? Qual será sua modalidade de aprendizagem? Como será sua visão de mundo? Que idéias terá a respeito do ‘como ensinar’ e do ‘como aprender’?

Todas as questões acima são de grande importância no processo de aprendizagem, na medida em que o aprendente só existe em função do ensinante. As insatisfações que inquietam o professor interferem no desenvolvimento de seu trabalho, e esta interferência vai incidir diretamente em seu aluno. Outra questão fundamental é que nem sempre o professor tem a consciência ( ou não admite) de que ele próprio está aprendendo com seu aluno; trabalhar com as faltas do outro pressupõe necessariamente que este professor esteja disposto a lidar com seus próprios limites e possibilidades, com sua própria incompletude; é colocar à prova sua própria identidade com o conhecimento.

São, portanto, inúmeros os aspectos que constituem o processo de ensino-aprendizagem e acredito ter focalizado alguns neste texto. A questão social e a política educacional são pequenos ‘panos de fundo’ para a escola e os diferentes grupos que a freqüentam, tanto de alunos, como de professores, cada um com sua subjetividade. O que deveria ser efetivado é uma política educacional que abraçasse a todos, indistintamente, ricos e pobres, onde todos tivessem os mesmos direitos, onde todos pudessem ter resgatados o prazer pelo aprender. Como diz Sara Paín:

“Não se trata de fazer uma pedagogia para ricos ou para pobres; trata-se de fazer uma pedagogia com rigor científico e de dar a todos o direito de se apropriar dela. Trata-se de fazer um método, uma programação, um modo de acesso ao conhecimento, que se construa cientificamente. Entretanto, o fundamental não são os métodos em si, mas os critérios sobre os quais esses métodos são construídos”. (Paín, 1996, p. 18)

sábado, abril 29, 2006

O processo de aprendizagem e sua interseção com os quatro níveis que constituem o sujeito: organismo, corpo, inteligência e desejo

Não podemos dissociar o conceito de aprendizagem do conceito de vínculo afetivo e desejo. Em toda minha experiência como ensinante, senti de forma intensa o quanto a questão do vínculo é essencial para que a aprendizagem se torne prazerosa. Constatei (e ainda constato) que, aparentemente, os professores, de um modo geral, não desejam se envolver com seus alunos além daquilo que é inevitável: o dia-a-dia na sala de aula, sendo o único elo entre professor e aluno, o conteúdo a ser “transmitido”. A cada final de trimestre, os alunos são avaliados de forma absolutamente objetiva, e cada professor faz a sua avaliação de acordo com seus critérios. Neste contexto, fica excluída a subjetividade do aluno e toda sua história de vida.

Faço um convite para que todos reflitam sobre o problema complexo que abrange a questão da aprendizagem. Por um lado, temos o aluno (aprendente) que emerge de uma família com características próprias: é um filho desejado pelos pais, dentro de um lar organizado, onde a individualidade de cada um é respeitada e todos são aceitos como são, sem modelos e idealizações; por outro lado, temos outro aluno cuja família é o oposto da descrita acima: é um filho não desejado, dentro de um lar sem a mínima organização, sem manifestação de afeto, onde não existem valores como respeito, amizade, paciência e amor; temos ainda outro tipo de aluno o qual vem de uma família que, apesar de ser organizada e oferecer o que considera como mais importante ao filho (cuidados com a saúde, educação, roupas e alimentação), deixa de oferecer o que é tão importante quanto o que foi mencionado: carinho, tolerância e respeito à individualidade desse filho, aceitando-o como ele é, sem idealizações, sem cobranças para que ele seja alguém que ele jamais poderá ser.

Da mesma forma que o aluno, o professor também traz consigo uma série de problemas que o fazem único: alegrias, frustrações, questionamentos sobre o seu saber, cônjuge, filhos, pais, irmãos, enfim, seu mundo, suas vivências.

Ensinante e aprendente, suas vivências e cada um com seu modo de interpretar a realidade, encontram-se inseridos em um mesmo contexto – escola – onde passam a se relacionar com o objetivo específico de ensinar/aprender. Aqui inicia o processo: duas pessoas com objetivos comuns: desejo de ensinar e desejo de aprender.

Para ensinar é preciso antes de tudo aceitar que não somos donos da verdade, que nosso aluno também pode nos ensinar, que muitas vezes experimentaremos o gosto da frustração por não conseguirmos atingir as metas que havíamos proposto, que teremos que ter a humildade saudável de admitir que podemos cometer erros, que é necessário permitir que nosso aluno aprenda, que precisaremos sempre desejar saber e saber desejar.

Para aprender é fundamental a interseção dos quatro níveis que constituem o sujeito: organismo, corpo, inteligência e desejo. A partir do organismo com o qual nascemos, construímos nosso corpo que, por sua vez, apropriar-se-á do organismo. Toda a aprendizagem passa pelo corpo e, este, coordena ações, acumula experiências, adquire novas destrezas, automatiza os movimentos. A inteligência refere-se à estrutura cognitiva, ao nível lógico; o conhecimento se constrói; o conhecimento é assimilação de um dado exterior às estruturas do sujeito. A inteligência tende a ser objetiva. Ao contrário, o desejo é subjetivante, referindo-se à estrutura simbólica, ao nível inconsciente. O desejo tende à individualidade, tornando cada ser humano único em relação ao outro. É o nível simbólico que organiza a vida afetiva e as significações, expressa nossos sonhos, nossos erros, nossas lembranças, nossos mitos.

A aprendizagem é o processo onde entram em inter-relação os quatro níveis de um sujeito-aprendente e de um sujeito-ensinante. É com base nessas dimensões – lógica e desejante- além do corpo e do organismo, que se dará a aprendizagem ou a não-aprendizagem.

As experiências que vivencio atualmente, me remetem a situações onde o questionamento do atual modelo de ensino preconizado nas escolas é inevitável, pois não leva em conta as quatro dimensões que formam o sujeito. Tenho muitos casos de alunos que vêm de famílias como as que descrevi anteriormente. Como trabalhar do mesmo modo com sujeitos que têm vivências tão diferentes? Uns têm a rotina do sofrimento estampada em seus rostos; outros, buscam na figura do professor a mãe ( ou o pai) que não possuem; e ainda existem aqueles que vêm de um lar tranqüilo e acolhedor, onde não faltam amor e interesse pelo desenvolvimento do filho. São trinta ou quarenta alunos em uma mesma sala, com necessidades e possibilidades tão diferentes. Por sua vez, o professor já está cansado para se preocupar com tais diferenças; além do mais, ele tem seus próprios problemas que o ocupam e o preocupam. Sem falar na falta de preparo para enfrentar situações-problema em sala de aula, caindo no círculo-vicioso de encaminhar para a coordenação os alunos ditos ”indisciplinados” . Assim, fica estabelecido um contrato, unilateral, cujo aspecto mais significativo é “não estabelecer vínculo” com o aluno. Situa-se aí a maior parte dos problemas de aprendizagem. Na verdade, o problema está em não querer ver as diferenças, em não desejar encontrar um meio de trabalhar com elas.

Como foi dito no início do trabalho, o vínculo exerce um papel fundamental para a efetivação do aprender. E é desde cedo que a criança vivencia tal experiência, seja com sua mãe, seja com um cuidador que desempenhe este papel. Se o vínculo foi intenso e prazeroso desde o princípio, não existirão dificuldades futuras relacionadas à aprendizagem, pois a criança sentir-se-á autorizada a aprender e a estabelecer um vínculo afetivo com seus professores, desde que estes também a autorizem a fazê-lo. Da mesma forma acontecerá com aquele que ensina: uma história de vida onde lhe foi permitido estabelecer vínculos os quais o conduziram a experiências prazerosas com o conhecimento, lhe facilitará o relacionamento com seus alunos. Portanto, toda a bagagem que ensinante/aprendente trazem consigo, podem interferir significativamente no processo de ensino/aprendizagem, produzindo (ou não) sucessos ou fracassos escolares.

CONCLUSÃO

Re-significar os papéis do professor e do aluno como sujeitos constituídos pelas dimensões do organismo, corpo, inteligência e desejo, é essencial para que o processo de ensino/aprendizagem se construa de forma saudável, onde tais sujeitos se permitam estabelecer vínculos uns com os outros, abrindo espaço para contatar com o conhecimento, cabendo ao ensinante autorizar seu aluno a aprender, valorizando seus saberes, respeitando suas possibilidades e sua história de vida.