Não podemos dissociar o conceito de aprendizagem do conceito de vínculo afetivo e desejo. Em toda minha experiência como ensinante, senti de forma intensa o quanto a questão do vínculo é essencial para que a aprendizagem se torne prazerosa. Constatei (e ainda constato) que, aparentemente, os professores, de um modo geral, não desejam se envolver com seus alunos além daquilo que é inevitável: o dia-a-dia na sala de aula, sendo o único elo entre professor e aluno, o conteúdo a ser “transmitido”. A cada final de trimestre, os alunos são avaliados de forma absolutamente objetiva, e cada professor faz a sua avaliação de acordo com seus critérios. Neste contexto, fica excluída a subjetividade do aluno e toda sua história de vida.
Faço um convite para que todos reflitam sobre o problema complexo que abrange a questão da aprendizagem. Por um lado, temos o aluno (aprendente) que emerge de uma família com características próprias: é um filho desejado pelos pais, dentro de um lar organizado, onde a individualidade de cada um é respeitada e todos são aceitos como são, sem modelos e idealizações; por outro lado, temos outro aluno cuja família é o oposto da descrita acima: é um filho não desejado, dentro de um lar sem a mínima organização, sem manifestação de afeto, onde não existem valores como respeito, amizade, paciência e amor; temos ainda outro tipo de aluno o qual vem de uma família que, apesar de ser organizada e oferecer o que considera como mais importante ao filho (cuidados com a saúde, educação, roupas e alimentação), deixa de oferecer o que é tão importante quanto o que foi mencionado: carinho, tolerância e respeito à individualidade desse filho, aceitando-o como ele é, sem idealizações, sem cobranças para que ele seja alguém que ele jamais poderá ser.
Da mesma forma que o aluno, o professor também traz consigo uma série de problemas que o fazem único: alegrias, frustrações, questionamentos sobre o seu saber, cônjuge, filhos, pais, irmãos, enfim, seu mundo, suas vivências.
Ensinante e aprendente, suas vivências e cada um com seu modo de interpretar a realidade, encontram-se inseridos em um mesmo contexto – escola – onde passam a se relacionar com o objetivo específico de ensinar/aprender. Aqui inicia o processo: duas pessoas com objetivos comuns: desejo de ensinar e desejo de aprender.
Para ensinar é preciso antes de tudo aceitar que não somos donos da verdade, que nosso aluno também pode nos ensinar, que muitas vezes experimentaremos o gosto da frustração por não conseguirmos atingir as metas que havíamos proposto, que teremos que ter a humildade saudável de admitir que podemos cometer erros, que é necessário permitir que nosso aluno aprenda, que precisaremos sempre desejar saber e saber desejar.
Para aprender é fundamental a interseção dos quatro níveis que constituem o sujeito: organismo, corpo, inteligência e desejo. A partir do organismo com o qual nascemos, construímos nosso corpo que, por sua vez, apropriar-se-á do organismo. Toda a aprendizagem passa pelo corpo e, este, coordena ações, acumula experiências, adquire novas destrezas, automatiza os movimentos. A inteligência refere-se à estrutura cognitiva, ao nível lógico; o conhecimento se constrói; o conhecimento é assimilação de um dado exterior às estruturas do sujeito. A inteligência tende a ser objetiva. Ao contrário, o desejo é subjetivante, referindo-se à estrutura simbólica, ao nível inconsciente. O desejo tende à individualidade, tornando cada ser humano único em relação ao outro. É o nível simbólico que organiza a vida afetiva e as significações, expressa nossos sonhos, nossos erros, nossas lembranças, nossos mitos.
A aprendizagem é o processo onde entram em inter-relação os quatro níveis de um sujeito-aprendente e de um sujeito-ensinante. É com base nessas dimensões – lógica e desejante- além do corpo e do organismo, que se dará a aprendizagem ou a não-aprendizagem.
As experiências que vivencio atualmente, me remetem a situações onde o questionamento do atual modelo de ensino preconizado nas escolas é inevitável, pois não leva em conta as quatro dimensões que formam o sujeito. Tenho muitos casos de alunos que vêm de famílias como as que descrevi anteriormente. Como trabalhar do mesmo modo com sujeitos que têm vivências tão diferentes? Uns têm a rotina do sofrimento estampada em seus rostos; outros, buscam na figura do professor a mãe ( ou o pai) que não possuem; e ainda existem aqueles que vêm de um lar tranqüilo e acolhedor, onde não faltam amor e interesse pelo desenvolvimento do filho. São trinta ou quarenta alunos em uma mesma sala, com necessidades e possibilidades tão diferentes. Por sua vez, o professor já está cansado para se preocupar com tais diferenças; além do mais, ele tem seus próprios problemas que o ocupam e o preocupam. Sem falar na falta de preparo para enfrentar situações-problema em sala de aula, caindo no círculo-vicioso de encaminhar para a coordenação os alunos ditos ”indisciplinados” . Assim, fica estabelecido um contrato, unilateral, cujo aspecto mais significativo é “não estabelecer vínculo” com o aluno. Situa-se aí a maior parte dos problemas de aprendizagem. Na verdade, o problema está em não querer ver as diferenças, em não desejar encontrar um meio de trabalhar com elas.
Como foi dito no início do trabalho, o vínculo exerce um papel fundamental para a efetivação do aprender. E é desde cedo que a criança vivencia tal experiência, seja com sua mãe, seja com um cuidador que desempenhe este papel. Se o vínculo foi intenso e prazeroso desde o princípio, não existirão dificuldades futuras relacionadas à aprendizagem, pois a criança sentir-se-á autorizada a aprender e a estabelecer um vínculo afetivo com seus professores, desde que estes também a autorizem a fazê-lo. Da mesma forma acontecerá com aquele que ensina: uma história de vida onde lhe foi permitido estabelecer vínculos os quais o conduziram a experiências prazerosas com o conhecimento, lhe facilitará o relacionamento com seus alunos. Portanto, toda a bagagem que ensinante/aprendente trazem consigo, podem interferir significativamente no processo de ensino/aprendizagem, produzindo (ou não) sucessos ou fracassos escolares.
CONCLUSÃO
Re-significar os papéis do professor e do aluno como sujeitos constituídos pelas dimensões do organismo, corpo, inteligência e desejo, é essencial para que o processo de ensino/aprendizagem se construa de forma saudável, onde tais sujeitos se permitam estabelecer vínculos uns com os outros, abrindo espaço para contatar com o conhecimento, cabendo ao ensinante autorizar seu aluno a aprender, valorizando seus saberes, respeitando suas possibilidades e sua história de vida.